Resenha: A Epopeia de Camões
- gogvg7
- 30 de nov. de 2015
- 12 min de leitura

Tema: Crítica à Epopeia D’OS Lusíadas, na qual o autor narra à viagem de Vasco da Gama as Índias.
Divisão da obra: seis partes: Génese D’OS Lusíadas, Os Temas Humanísticos, A Ideologia Cavaleiresca, A Contradição Central D’OS Lusíadas, A Estrutura D’OS Lusíadas e o Significado da Mitologia N’OS Lusíadas.
Autoria: António José Saraiva 1917-1993, de Leiria em Portugal, foi professor e historiador de literatura portuguesa. Autor de inúmeras obras de grande relevo, entre elas a História da Cultura em Portugal e a História da Literatura Portuguesa.
Este texto se propõe a refletir acerca da complexa tarefa de fazer escolhas, fato este possível de acontecer no âmbito da ideologia da formação educativa.
Luís de Camões, embora tenha nascido em 1524 ou 1525, tempo literário do primeiro período Clássico no século XVI, recebeu uma educação Humanista relativa ao período anterior, ou seja, o século XV. Isto não significa de modo algum que sua formação tenha sido antiquada, pois entre um período histórico e outro não ocorre uma ruptura radical, mas uma transformação na qual são mantidos aspectos ainda considerados inovadores.
Como primeiro passo, será apresentada a fonte de inspiração na qual o Poeta se abasteceu para escrever sua obra publicada em 1572, ou seja, à volta aos padrões clássicos da antiguidade greco-latinos da cultura.
Na sequência, seguiremos o tema das escolhas apoiando-nos, a princípio em Génese D’os Lusíadas nas definições das epopeias primitivas e epopeias de imitação, seguindo em Os Temas Humanísticos com a origem erudita de Os Lusíadas, transitando em A Ideologia Cavaleiresca, com sua ideologia nobre na qual o Poeta recomenda que cada um não se lhe permita ir além de sua função, nos detendo em A Contradição Central D’os Lusíadas com a oposição entre o humanismo e o espírito cavaleiresco, passando em A Estrutura D’os Lusíadas: O mundo Histórico com os objetivos da viagem dos portugueses, chegando enfim em O Significado da Mitologia N’os Lusíadas, aqui considerado um porto no qual aportaremos trazendo na bagagem o percurso da travessia.
Conforme o acima mencionado, a educação humanista de Camões situa-se no tempo de um espírito novo, época em que se descobriu que o ser humano era capaz de dominar o universo colocando-se no seu centro, ou seja, o tempo do antropocentrismo, período da cultura renascentista e moderna. Desde o século XV, o homem vinha sendo compreendido como medida de si mesmo e de todas as coisas e, portanto capaz de enfrentar os perigos do mar para conquistar novos mundos ainda desconhecidos.
A convicção de que o homem dispunha de uma força racional, leva as pessoas cultas da época de Camões, no século XVI, a identificarem-se com a cultura da Antiguidade a qual valorizava o homem e a vida terrena, o que era bem distinto da orientação teocêntrica do período medieval onde Deus estava no centro do universo.
Por tais razões, tudo converge para que Luís de Camões volte os olhos para as antigas epopeias da Antiguidade greco-latina, como por exemplo, a Eneida de Virgílio. Logo, devidamente inspirado pela valorização humana, Camões escreve sua obra Os Lusíadas, por meio da qual narra a ousada viagem as Índias liderada por Vasco da Gama entre 1497 e 1498 juntamente com a história de Portugal. Trata-se de uma narrativa na forma de poesia épica na qual, em que pese o antropocentrismo do tempo do Poeta, os feitos humanos se fazem acompanhar pela mitologia.
Sua tarefa é, portanto considerada de grande porte, ou seja: “dotar o mundo moderno com uma réplica dos poemas épicos antigos, dar aos feitos portugueses uma categoria universal e [não satisfeito, ainda pretendia] enobrecer a língua portuguesa”. Acrescentando-se, no que diz respeito aos demais motivos para tal viagem, a intenção política de formar o império português no Oriente, além da expansão da fé cristã, isto é, precisamente a fé católica.
Aqui, podemos observar de pronto que já há uma escolha. O Poeta escolhe compor sua obra, porque se tem como capaz de tal proeza. Com efeito, o Poeta leva em conta a confiança que deposita em sua educação erudita, por meio da qual se percebe em um tempo histórico, no qual o mercantilismo se dedica a fortalecer o Estado e enriquecer auma certa classe, agora denominada burguesia. Por consequência e imaginação supomos que Camões tenha ficado animado com a perspectiva de ascensão econômica burguesa e que devido, ao menos por certa proximidade social ele fosse brindado com algum benefício, uma vez que padecia de grave crise financeira.
No campo da cultura, Luís de Camões conta com a independência da língua portuguesa que obtém autonomia frente à língua galego-português, que até então vigorava em toda a Península Ibérica. Ao mesmo tempo a língua literária se desenvolve, distinguindo-se da língua falada. A ênfase, então se transfere da poesia para a prosa. Já a corte, por sua vez eleva-se ao status de principal centro de produção cultural e literária e a favor de Os Lusíadas, consta que D. Sebastião, o chamado rei menino, foi o primeiro a ouvir do Poeta, no castelo de verão da monarquia em Sintra, as primeiras estrofes da epopeia.
Em Génese D’os Lusíadas, o texto apresenta a definição de epopeia narrativa. Esta tem um fundo histórico em que se registram sob a forma de poemas, tanto as tradições como os ideais de um grupo étnico e as aventuras de um herói igualmente étnico, como por exemplo, Ulisses. Para exemplificar, o autor dispõe, num polo os poemas homéricos que narram as epopeias primitivas como as registradas na Chanson de Roland e no Cantar de Mio Cid. Este grupo étnico, ainda em expansão guerreira vive em meio às forças da natureza tidas e havidas como personalidades humanas. Trata-se, pois de um tempo histórico em que o grupo depende da força e da habilidade de um herói.
Num outro polo têm-se as epopeias de imitação, conforme as narrativas de Virgílio em Eneida, ainda seguindo os padrões homéricos. Estas narrativas pertencem ao gênero literário épico, o qual por sua vez conta um novo tipo de epopeia, visto que o tempo histórico agora é outro. Este é um momento em que a noção de estado anula o conceito de grupo étnico, há uma vida civil e as guerras são para profissionais.
Posto isso, torna-se importante assinalar que as noções de estado, de vida civil e de guerra, agora são abstrações, ou seja, como algo que existe somente como ideia, e não como algo que se pode tocar. Não se trata, portanto de uma coisa concreta, palpável. Neste sentido os deuses e heróis étnicos são transformados em alegorias como um símbolo, um objeto que pode significar outra coisa para além do que se vê e a questão das dificuldades das escolhas do que essa representação possa revelar se faz presente.
Em Os Temas Humanísticos, Saraiva qualifica Os Lusíadas como um produto literário erudito do período do humanismo. Considerando que o humanismo sucede o período medieval e precede o renascimento, e que a história registra que o correr do tempo histórico não apresenta necessariamente uma ruptura, mas transformações, nas quais aspectos característicos de um tempo sobrevivem como parte ou até mesmo de modo significativo no tempo que substitui ou ultrapassa, então o humanismo carrega em si, no mínimo resquícios do medieval e que o renascimento também guarda notas do humanismo. Dito isso, se a ênfase recai sobre a prosa, isto não significa que a poesia foi esquecida, se a poesia se separa da música, esta não foi erradicada, mas que neste momento passa a ocupar um espaço no qual o conceito moderno de poesia envolve a sua autonomia, o que não significa que esta escolha não tenha sido complexa.
No sentido da tarefa de fazer as escolhas, recortamos o Canto do Velho do Restelo, na estrofe “Ó glória de mandar, ó vã cubiçae... o povo néscio se engana”. Ora, se o Velho do Restelo, segundo afirma Saraiva é o próprio Camões, que no caso representa a prudência do povo por ele denominado como néscio ou estúpido, então a viagem as Índias não seria, necessariamente um feito épico português. Desta maneira, supõe-se que Camões não se identifica com o povo, visto que o desqualifica na voz daquele que o representa. Por consequência, o Poeta não estaria posicionado entre o povo, mas entre os nobres e fidalgos, sendo que a pretensão destes era precisamente o engrandecimento da saga portuguesa. Com os benefícios, incluídos sem resquícios de dúvidas.
Na seção correspondente à Ideologia Cavaleiresca, ocorre uma exposição bem pontual das omissões em Os Lusíadas de tudo aquilo que dá uma fisionomia particular à história da nação portuguesa. Há omissões relevantes, desde os acontecimentos que deram origem à gesta de Alfonso Henriques, o cerco de Lisboa, além da construção do Mosteiro dos Jerónimos, entre outras notáveis referências.
Por outro lado, o Poeta desenvolve, a passos largos o caso cavaleiresco dos doze pares da Inglaterra. Ora, este caso é de ordem transnacional, pois se trata de uma possível afronta entre nobres e damas inglesas, as quais sem defensores apelam ao eminente Duque de Alencastro, que heroicamente convoca igual número de cavaleiros lusitanos encarregados de resgatar a honra das ofendidas damas. Por fim, Camões concede a vitória aos bravos cavaleiros defensores. Saraiva, por sua vez contesta o episódio afirmando que o caso somente ganhou notoriedade pela nomeação recebida em Os Lusíadas.
Neste relato que o Poeta seleciona a sua escolha tem como personagens nobres ingleses e lusitanos, contrapondo um dos preceitos humanistas, que é precisamente a crítica da teoria que fundamenta os benefícios usufruídos pela nobreza, ou seja, os direitos obtidos pelo fato de origem de nascimento. Nasceu nobre, logo é privilegiado. Camões, quando muito os critica por não prestarem homenagem aos seus antepassados, visto que escolhem a doce vida a que têm direito por nascimento. Quanto aos acontecimentos relacionados ao povo, estes não são selecionados, uma vez que até mesmo a riqueza e a consequente ascensão social não são suficientes para “apagar” a mancha de origem popular. No sentido da tarefa de fazer as escolhas, recortamos o Canto do Velho do Restelo, na estrofe “Ó glória de mandar, ó vã cubiçae... o povo néscio se engana”. Ora, se o Velho do Restelo, segundo afirma Saraiva é o próprio Camões, que no caso representa a prudência do povo por ele denominado como néscio ou estúpido, então a viagem as Índias não seria, necessariamente um feito épico português. Desta maneira, supõe-se que Camões não se identifica com o povo, visto que o desqualifica na voz daquele que o representa. Por consequência, o Poeta não estaria posicionado entre o povo, mas entre os nobres e fidalgos, sendo que a pretensão destes era precisamente o engrandecimento da saga portuguesa. Com os benefícios, incluídos sem resquícios de dúvidas.
Segue-se ainda, que o Poeta eleva a sua superioridade intelectual acima dos feitos militares, alinhado no que diz Ferreira que Homero é superior a Aquiles, posto que seus feitos lhe sirvam de matéria literária. Acrescentando, ainda que as Musas estejam acima dos poetas e estes acima dos heróis. Retomando, pois o tema da complexidade das escolhas tem-se aqui um poeta pensando e agindo de acordo com sua formação humanista e, por consequência com a sua ideologia. Devido ao exposto, não resistimos à uma frase de Vinícius de Moraes onde ele diz: “Mas ele desconhecia / Este fato extraordinário / Que o operário faz a coisa / E a coisa faz o operário.
Desta maneira, certas posições camonianas seriam contraditórias e outras, por sua vez não corresponderiam aos fatos da realidade. Considerando, em hipótese que os valores específicos da educação humanista, no sentido de igualdade afetam tanto o chamado “povo néscio” quanto ao ilustre Poeta que se utiliza das letras para narrar acontecimentos que lhe servem, de tema apenas como material para o poema. Logo, a superioridade de um sobre o outro poderia ser entendida como natural, se o olhar se fizesse numa perspectiva histórica ideológica de vencedores e dominados. Vem, então à tona, a hipótese, plausível, em nosso entender, de que a superioridade do homem letrado sobre o povo inculto seja o resultado da ação humana e não como um acontecimento natural, visto que também é histórica e, esta como se sabe consta como uma produção intelectual perfeitamente humana.
Além desse fator, acrescentando que em Os Lusíadas não se vê o Gama falar aos seus companheiros de viagem, porque estes não são reais, já que existem como abstrações. Contudo, se Camões e sua obra existem de fato, nos perguntamos quanto à existência de, ao menos um resquício de consciência quanto ao caráter ideológico do ato de levar a fé e uma moral completamente estranha ao povo das Índias, já que a conquista territorial era concebida como certa. Em resposta à nossa própria pergunta nos deparamos com o fato que a consciência, por sua vez também é um produto construído pela ciência que não está livre da influência da ideologia em suas “descobertas” que dependem de pesquisas de um poder econômico. Então, como questionar a consciência de Luís de Camões quanto às suas escolhas, se este conceito, além de lhe ser desconhecido, encontra-se devidamente oculto pela ideologia.
Em A Ideologia Cavaleiresca, com relação ao acima exposto, tem-se que além dos companheiros de Gama, a noção de estado, entre outros seria, resultado de uma abstração, visto que não se referiam ao concreto, à realidade, mas a um aparecer no sentido de imagem. Contudo, estas diferenças são devidamente apagadas pela ideologia que cumpre o seu papel pedagógico de ensinar, os por assim dizer dominantes e os dominados sociais.
Saraiva, destaca ainda em A Contradição Central dos Lusíadas a incompatibilidade do humanismo com o espírito cavaleiresco. Os humanistas são completamente avessos à guerra, porém a guerra contra o Marrocos é aconselhada na sequência. Interessante observar que a recomendação de guerra somente é indicada contra os chamados infiéis submersos em vícios mil, como também é condenada entre os cristãos. A contradição está posta apesar da presença ou da ausência da ideologia religiosa acompanha a incoerência. Nesta mesma linha segue-se a tendência cosmopolita do humanista, ou seja, ele não admite divisão seja de terras ou de clãs. Entretanto, admite a noção de nacionalidade e de estado, mas um estado monárquico com exclusão do sistema feudal. Além do culto à língua nacional e do elegante latim.
No mesmo sentido chegamos A Estrutura D’Os Lusíadas: O Mundo Histórico, na qual o crítico da obra de Camões expõe a questão da presença dos deuses, ditos pagãos num evento de caráter histórico com objetivo de propagar a fé cristã. Isto pode ser considerado, de um lado uma coexistência própria do período do renascentista e, de outro lado a utilização da mitologia como um ornamento a ser, apenas contemplado, visto que está destituído de valor funcional.
As críticas se sucedem, e desembocam na viagem de Vasco da Gama como desprovida de ação, de intriga e inclusive de personagens. O argumento apoia-se, na falta da presença de dificuldades que fossem resolvidas graças às forças e ao talento humano, tal como havia ocorrido na saga grega de Ulisses. Todavia, se, como já explicitado anteriormente os protagonistas não existem e o Gama mantém-se sua aparência absolutamente seca no sentido que não estar molhada, mas enxuta e inalterada como a de seu embarque. Em outras palavras, Gama, diz Saraiva, nem figura chega a ser de tão apagado que é. A descrição, nada lisonjeira o retrata como medíocre, e quando muito consegue fazer discursos para recitá-la os formosos versos camonianos. Na verdade, uma pessoa completamente insossa, desvalida demais para ser um herói.
A viagem as Índias, por sua vez também não escapa à crítica de Saraiva. Não há enredo, apenas a submissão dos navegantes aos deuses que os transportam. Apesar disso, o crítico reconhece o relevo da tromba marítima, bem como do fogo-de-santelmo e do escorbuto, incluindo ainda os Trabalhos do Mar registrado no Canto V. Infelizmente os referidos episódios não contam com a presença humana, além de serem descritos e não narrados. Até mesmo os diálogos não tem existência entre o homem e o mar, ao contrário da saga grega. Mas, logo a seguir as escolhas camonianas são elogiadas pela batalha de salado, assim como a batalha de aljubarrta e os resumos de Tétis, sem esquecer a beleza do episódio de Inês de Castro. Assim, entre conquistas, batalhas e tragédias Os Lusíadas segue, sem ao menos a narrativa da formação de uma nação, de uma pátria, reduzidas aos sentimentos do Poeta e não em seus 8.816 versos decassílabos.
Assim, as escolhas de Camões quanto ao elenco de seus personagens resultam, por conseguinte nas já conhecidas noções abstratas, próprias da epopeia de imitação. A imitação, no caso, ocorre por conta do modo descritivo, com o qual o Poeta narra as representações por ele escolhidas, como por exemplo, a corte do rei de Melinde, que"tem o estilo de corte de qualquer rei do Ocidente", acrescentando ainda, que a mesma emnada se difere dos personagens retratados como príncipes por Virgílio. Por tudo isto, o que se oferece ao leitor é exatamente o que já se viu antes.
Ainda no sentido da estrutura de Os Lusíadas, a crítica de Saraiva toca no aspecto da inexistência dos personagens, uma vez que não há herói e tampouco ação propriamente dita, mas alegorias de abstrações. Entretanto, apesar das escolhas pelo mesmo o Poeta oferece o episódio de Inês de Castro, que se trata de fato de uma figura histórica. Assim, o personagem da linda jovem castelhana escapa sã e salva de ser considerada uma abstração, mesmo que na realidade já esteja morta.
Em conclusão não temos dúvida que o capítulo IV, A Epopeia, de António José Saraiva, relativo Aos Lusíadas de Luís de Camões é um excelente texto-crítico da poesia épica e das escolhas pelas quais se posicionou o Poeta. Mostra-se de grande valor para o estudo da literatura portuguesa, uma vez que isto se torna claro diante da pesquisa que se impõe para sua realização. Não é um texto de louvor à consagrada obra tida como a mais importante epopeia em língua portuguesa, ao contrário, apresenta no seu andamento argumentos contra, mas também prós ao poema de Camões, conforme já mencionado, segundo nossa leitura, possui, entre outros aspectos um fio ideológico. Por fim, arriscamos a indicar a recomendação do presente texto-crítico aos leitores, que além do interesse nas áreas humanas, disponham de grande gosto e energia, porque um passeio mágico no carro de Apolo e de Marx acende o sol do mundo dos símbolos, o que convenhamos, não é pouco.
Por: Fernanda Ferreira
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